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SENSO INCOMUM - Pode uma lei descriminalizar, ad hoc, a evasão de divisas e lavagem?

Dizem as línguas por aí que o governo deseja aprovar uma lei no Congresso pela qual se “incentivará” a repatriação de recursos no exterior, para reforçar o caixa. Em troca de pagamento de Imposto de Renda e de multa o detentor de recursos não declarados no exterior seria beneficiado com anistia dos crimes de evasão fiscal e de lavagem de dinheiro.

Consta que, durante as discussões que o governo fez no dia 11 de julho, um assessor mais atilado disse que o projeto, ainda a ser elaborado, caso a proposta seja aprovada pela presidente Dilma, teria dispositivos para evitar que dinheiro de corrupção ou de crimes como tráfico de drogas fosse beneficiado.

Além disso, pagaria multa exatamente como um tipo de punição. Segundo o assessor, há hoje interesse por parte de brasileiros, que mandaram dinheiro para fora do país sem declarar, em trazer os recursos para o país e dispostos a pagar para fazer a operação. O motivo é que, diante da nova onda de combate a transferências ilegais de recursos no exterior, estes brasileiros estariam com dificuldades para utilizar seu dinheiro.

Diz-se, mas ninguém sabe (e nem teríamos como saber) que lá fora existem mais de 200 bilhões de dólares “não declarados” (sic). Bom, isso dá quatro orçamentos do Estado do Rio Grande do Sul. A ideia do governo é velha. José Mentor, do PT, já havia protocolado um projeto igualzinho em 2005 (PL 5228), tratando da matéria. Também descriminalizava os mesmos crimes e deixava fora o dinheiro do tráfico e corrupção (ainda bem, pois não?).

Em termos utilitaristas e de análise econômica do direito, parece ser um bom projeto. O problema é saber se existe respaldo constitucional. Tem o legislador liberdade de conformação para esquentar dinheiro desse modo? Pode ele fazer descriminalizações ad hoc?

Não vou discutir se o projeto fere a ética ou a moral. Já escrevi muito sobre a diferença entre ética e moral (Verdade e Consenso e Jurisdição Constitucional e Decisão Juridica). Mas, sobretudo, também já expliquei que, no atual estágio do direito, não cabe mais a frase “é legal, mas é imoral”. Essa é uma desculpa de maus governantes e maus gestores da coisa pública. Além de nos jogar de volta à dicotomia direito-moral, quando sabemos que deve existir, no paradigma do Estado Democrático, uma co-originariedade entre estes campos. Dou isso como “lido”.

Vou apenas referir que o projeto fere vários princípios constitucionais, como o da igualdade e da moralidade, embora alguém possa alegar que atende o da eficiência. O problema, aqui, é discutir se o Estado (legislador e governo) tem ou não o dever de proteger bens jurídicos transindividuais do mesmo modo que os de cariz individual. Quando alguém remete dinheiro para o exterior e não declara, comete, no mínimo, dois crimes, que violam bens transindividuais. Para mim, punir esse tipo de conduta se torna obrigação e não uma opção econômica, por assim dizer.

Caso aprovado um projeto desse tipo — com descriminalização ad hoc para os repatriadores — o que dizer para o sujeito que furta ou comete outro delito contra o patrimônio? Se ele devolver o dinheiro furtado, pagando uma multa, não deveria receber uma benesse do mesmo quilate? Ou a lei deve beneficiar apenas o andar de cima?

Assim, levando em conta a estrutura dos bens jurídicos e o papel a ser desempenhado pelo Estado em uma democracia, o projeto viola o princípio da proibição de proteção deficiente (ou insuficiente) — a Untermassverbot, problemática que Ingo Sarlet, Luciano Feldens, Maria Luiza Streck e eu já trabalhamos de há muito[1] e que o Supremo Tribunal Federal utilizou no voto do ministro Gilmar Mendes no julgamento do HC 418.376.

No direito contemporâneo, por vezes o Estado se excede, incidindo na violação do principio da proibição de excesso (Übermassverbot). Essa é a violação mais comum, que pode ser encontrada cotidianamente em penas em excesso, prisões fora de prazo (no plano das decisões judiciais) e em legislação desproporcional (por exemplo, a punição da corrupção como crime hediondo, banalizando o conceito de hediondez). A violação do outro principio, que é lado “b” dessa discussão, ocorre quando o Estado protege a menor um determinado bem jurídico. Aqui incide a Untermassverbot.

É evidente que a aferição desse tipo de situação é sempre difícil. A Untermassverbot foi aplicada pela primeira vez na Alemanha para declarar inconstitucional, há muitos anos atrás, da lei que descriminalizava o aborto. Por aqui foi utilizada em alguns casos (por exemplo, HC 104.410; HC 102.087; mais especificamente para a discussão aqui posta, o RE 418.376).

De todo modo, fica o alerta. Ou bem uma lei desse quilate que concede anistia fiscal e extinção da punibilidade a quem cometeu os crimes de evasão de divisas, lavagem de dinheiro e sonegação de tributos é constitucional e, assim, corremos o risco de estender a outras modalidades de crimes ou ela é inconstitucional por violação da igualdade, moralidade e, fundamentalmente, da Untermassverbot.

Daria uma bela discussão jurídico-constitucional. Com certeza, os defensores de um iluminismo jurídico-penal (mais) tradicional diriam (ou dirão) que qualquer lei que descriminaliza sempre será constitucional, não cabendo ao Judiciário discutir os seus efeitos. Por exemplo, o sujeito trás o dinheiro, paga a multa e depois o STF diz que a lei é inconstitucional – ele poderia ser punido criminalmente? Diz-se — não é meu caso, é claro —, que, em tal hipótese, não importa o conteúdo da lei porque não aplicá-la violaria a reserva legal. Minha resposta a esses argumentos tem sido a de que a reserva legal também é uma reserva constitucional, porque o dispositivo do CPP está também, ipsis literis, na Constituição. Logo, não é qualquer “coisa” que pode ser objeto de lei descriminalizadora.

Vou tentar explicar isso melhor. Certa vez, em uma banca de mestrado, uma professora de Direito Penal criticava com veemência o principio da proibição de proteção insuficiente. Perguntei a ela, então, o que ela faria em dois exemplos: um, concreto, decorrente de um dispositivo da Lei 9.639, introduzido à socapa e à sorrelfa para anistiar os crimes de sonegadores de tributos (esse dispositivo não fora votado e alguém colocou, à noite, no texto da lei e o veto ocorreu sem que isso fosse notado; no dia seguinte, foi publicada a retificação).

Disse-me ela: “houve a descriminalização da conduta nesse período”. Respondi: mas era um dispositivo fantasma, portanto, inconstitucional. E ela: “não importa; não aplicá-lo seria violar a reserva legal”. Expliquei-lhe que o Ministério Público Federal teve que ingressar com milhares de recursos extraordinários, a ponto de o Supremo Tribunal Federal, ao indeferir o HC 77.724-3, levar a matéria a plenário, declarando inconstitucional o referido dispositivo. No fundo, decidiu-se a coisa mais prosaica do mundo: a de que uma lei fantasma não pode gerar efeitos no mundo jurídico...! O inusitado da questão é que um grupo expressivo de juízes não conseguiu resolver o “problema gerado por uma lei fantasma”, tendo que ser chamada a Suprema Corte para solver o litígio, ficando patente a crise de baixa constitucionalidade, pela metafísica equiparação entre vigência e validade que serviu de base para as decisões que determinaram o arquivamento (sic) dos processos. Mas não consegui convencer a professora.

Insistente, dei-lhe, então, outro exemplo: suponhamos que, fantasma ou não, seja publicada no diário oficial uma lei com um dispositivo jabutidizendo que o estupro estava descriminalizado a partir daquela data. Você aplicaria a “lei descriminalizadora”? E ela: “Mas é claro que sim. Para todos os casos abrangidos pelo tipo-penal ‘estupro’. Afinal, não posso violar o principio da reserva legal”. Paramos a discussão por ali.

Pois essa discussão pode voltar agora, se aprovado um projeto de lei descriminalizando, de forma ad hoc, os crimes de lavagem de dinheiro e evasão de divisas nos casos de repatriamento de bilhões de dólares. Há uma fala na peça Rei Lear, de Shakespeare (Ato IV, cena VI), que pode ajudar na reflexão:

“Cobre o crime com placas de ouro e, por mais forte que seja a lança da justiça, se quebra inofensiva. Um crime coberto de trapos a palha de um pigmeu o atravessa”.


[1] STRECK, Maria Luiza S. Direito Penal e Constituição – a face oculta dos direitos fundamentais. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2008; STRECK, Lenio Luiz. A dupla face do princípio da proporcionalidade: da proibição de excesso (Übermassverbot) à proibição de proteção deficiente (Untermassverbot) ou de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais. Revista da Ajuris, Ano XXXII, nº 97, p. 180, mar. 2005; SARLET, Ingo Wolfgang. Constituição e proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre a proibição de excesso e de insuficiência. Revista da Ajuris, ano XXXII, nº 98, p. 107, 132, jun. 2005; também FELDENS, Luciano. A Constituição penal. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2005.


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